Dr Eduardo Adnet


Médico Psiquiatra e Nutrólogo

Bipolaridade e Álcool, uma péssima combinação!


Este é um artigo elaborado em razão do texto que escrevi: Gastos Exorbitantes Consumo de Álcool e Megalomania no Transtorno Bipolar, onde afirmo que o álcool etílico é um dos maiores inimigos dos portadores do Transtorno do Humor Bipolar, e aqui discorro sobre o tema.

A Desinibição comportamental induzida pelo Álcool

 

Todos nós possuímos mecanismos naturais de controle de impulsos, até os próprios animais possuem, evidentemente não em um nível tão sofisticado como o nosso. O que nos diferencia dos animais é que somente o ser humano possui a consciência de ter consciência. Os animais não possuem este entendimento, são, portanto, inocentes, inculpáveis ou “inimputáveis” se alguém assim o preferir.
Já conosco a situação é outra, pois somos diretamente responsáveis pelos nossos atos, ou pelo modo como exercemos nossa autonomia natural, a qual nos foi concedida por Deus.
Diante disto, possuímos responsabilidades, compromissos, deveres e a necessidade de cuidarmos do modo como nos portamos, uma vez que, quer façamos o bem ou o mal, colheremos, de uma forma ou de outra, os frutos do nosso procedimento.

Possuímos, todos nós, um mecanismo natural de controle ou “freio” a nível cerebral, mecanismo este de caráter fundamentalmente inibitório a fim de que possamos modular nosso temperamento, nossos desejos, impulsos, afetividade e sensualidade (aqui sensualidade diz respeito a sentidos e não à sexualidade, embora esta última também esteja inserida neste contexto).

Este “freio natural” é o que impede que externemos comportamentos inadequados ou inapropriados nas mais diversas situações onde nossos instintos são estimulados (sobretudo os instintos mais elementares). É este mecanismo de freio que, por exemplo, impede que quando estamos com fome simplesmente arranquemos uma coxinha de galinha, ou um quibe, das mãos de uma pessoa desconhecida e comamos a comida alheia. Pelo mesmo mecanismo é que não defecamos no meio da rua e nem temos relações sexuais em via pública. Este mecanismo natural de controle próprio difere das condutas sociais e culturais que aprendemos pelo simples fato de não ser aprendido, mas geneticamente herdado, ou seja, é intrínseco ao ser humano e de difícil inibição voluntária ou espontânea. Funciona a nível central (cerebral) e é permeado por um elevadíssimo grau de complexidade e sofisticação, sendo mediado por conexões nervosas, neuro-hormônios, dentre outros fatores biológicos e também psicológicos.

 

Dentre todas as substâncias psicoativas conhecidas (e utilizadas) pelos homens, o álcool etílico é o mais potente inibidor deste nosso “freio natural”. E uma de suas mais notáveis (e também perigosas) características é a desinibição progressiva deste controle central, a qual pode, fácil e rapidamente, extrapolar limites.

Pessoas com humor normal (eutímico) ou retraído (hipotímicas ou tímidas – acrescente-se) podem até se beneficiar de pequenas doses de álcool em razão da desinibição que provoca, ao passo que esta mesma substância pode vir a ser bastante prejudicial em pessoas hipertímicas e/ou ciclotímicas e ser devastadora em bipolares com manifestações de mania ou hipomania (Bipolaridade tipo I e II, respectivamente).

 

Vamos a alguns exemplos práticos

 

Já tratei de um paciente eutímico (humor normal, temperamento moderadamente brando) e que ao ingerir álcool ficava desinibido, muito sorridente, brincalhão e divertido. Se continuasse a beber, frequentemente o que lhe sobrevinha era a sonolência e ele adormecia. Ou seja, um comportamento diante do álcool sem grandes consequências. O álcool passou a ser um problema para este paciente na medida em que passou a beber em demasia, todos os dias, razão da necessidade de tratamento. Era um etilista.

Saltando de um extremo a outro, um dos pacientes bipolares mais complexos e complicados de que já tratei era como que uma bomba ambulante, bastava que começasse a ingerir álcool e iniciava períodos de hipomania/mania por vezes severíssimos. O detonador era sempre, e invariavelmente, o mesmo: o álcool.

Tratava-se de uma pessoa muito inteligente, criativa, carismática e por vezes bastante sedutora. Onde chegava era o centro das atenções e encantava a todos por sua inteligência, simpatia e grande erudição. Era um indivíduo muito bem educado em todos os sentidos, um profissional bem sucedido, amado por sua família e respeitado profissionalmente. Mas, como já disse, era como que uma bomba ambulante, como um potente carro que facilmente se desgovernava, bastando para tal que ingerisse álcool.

Era um bipolar autêntico com uma singularidade: seu perfil de bipolaridade se situava como que exatamente entre a hipomania e a mania nos períodos de crise (surtos/descompensação), uma classificação diagnóstica que requer do psiquiatra muita habilidade técnica e experiência no trato com pacientes bipolares. Especialmente com este, ressalto e repito, um caso de elevada complexidade e severidade relativamente moderada.

 

Era capaz, por exemplo, de realizar um excelente negócio, voltar pra casa e ler um livro inteiro, logo em seguida sair para uma festa em Brasília e amanhecer no Rio de Janeiro, tudo isso num pique só! Ficava dias sem dormir, se reunia com pessoas diferentes, em diferentes lugares em um mesmo período de 48hrs, retornava para casa e ia trabalhar. E produzia de modo notável. Eram os tais períodos de mania/hipomania que experimentava.

Porém, se ingerisse álcool, a história era outra. De carismático e magnético, logo passava a um estado de arrogância insuportável, corria muitos riscos desnecessários, tornava-se hipersexual, se envolvia em brigas com facilidade e gastava dinheiro de modo assombroso. Podia ficar subitamente demasiadamente eufórico passando à agressividade e a comportamentos francamente autodestrutivos. E conseguia ficar até mais de três dias bebendo, sem dormir um segundo sequer, e praticamente não se alimentava.

Contou-me que certa vez passou cerca de trinta dias alternando períodos de mania/hipomania seguidos de mais trinta dias de depressão severa, a autêntica depressão bipolar. Também, segundo o seu relato, conseguia devastar suas finanças de maneira impressionante, se reerguia financeiramente vindo tudo a acontecer novamente passados alguns meses, e em algumas situações, mesmo semanas. Teve prejuízos diversos, tanto no que diz respeito à sua saúde pessoal (física, psíquica e afetiva) e também financeira.

E aqui uma ressalva importante tanto quanto curiosa e interessante sob o aspecto psicopatológico: Em diversos períodos de mania/hipomania sem uso de álcool era surpreendentemente criativo e produtivo. Ao passo que nos períodos de descompensação (mania/hipomania) desencadeados pelo uso de álcool, expressava um comportamento seriamente autodestrutivo e com sérias e diversas consequências.

Tenho diversos outros exemplos que poderia citar de pacientes que já tratei com comportamentos semelhantes, mas penso que este exemplo já é mais do que suficiente para demonstrar que o álcool é um dos maiores (senão o maior) inimigo dos bipolares.

 

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Transtorno Bipolar e Alcoolismo
Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos da América

NIAAA - National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism

 

O Transtorno Bipolar e o Etilismo frequentemente ocorrem de forma comórbida. Diversas tentativas já foram feitas com a finalidade de explicar a relação entre estas duas condições, porém esta relação de comorbidade entre o Transtorno Bipolar e o Etilismo (ou mesmo o abuso de álcool) permanece pobremente compreendida. Já há evidências que sugerem uma relação genética entre estas condições psicopatológicas. Esta comorbidade (Bipolaridade e Etilismo) possui importantes implicações tanto para o diagnóstico como para o tratamento destes pacientes. O uso de álcool pode piorar o curso clínico (a evolução) do Transtorno Bipolar e ainda dificultar o tratamento. Na realidade, tem havido poucas pesquisas focadas no tipo de tratamento mais apropriado para estes pacientes comórbidos.

A dependência de álcool, alcoolismo ou etilismo, se caracteriza pela fissura (craving - desejo intenso) por álcool, possível presença de dependência física de álcool, e a incapacidade de controlar a forma, o modo ou a velocidade de como (e do quanto) se bebe em determinada ocasião, e uma crescente tolerância aos efeitos do álcool. Os critérios para o diagnóstico do abuso de álcool, entretanto, não incluem nem a fissura pelo álcool e nem a falta de controle sobre o modo de beber, ambas características do Etilismo. O abuso de álcool frequentemente se inicia precocemente (adultos jovens) e é um precursor da dependência de álcool.

 

Já no que tange à associação entre o etilismo e transtornos do humor, diversos estudos já têm sido disponibilizados a fim de que se possa evidenciar esta relação. Dois dentre eles, e também dentre os mais abrangentes estudos epidemiológicos sobre transtornos psiquiátricos, o National Institute of Mental Health's Epidemiologic Catchment Area (ECA) e o National Comorbidity Survey (NCS) trazem importantes revelações sobre o tema. O estudo ECA revelou que 60.7 por cento dos portadores de transtorno bipolar tipo I sofreram ao longo de suas vidas com o abuso de substâncias (álcool ou outras drogas); 46.2 por cento dos portadores de transtorno bipolar I também sofriam de abuso de álcool; e 40.7 por cento abuso de drogas ou dependência química. Quarenta e oito por cento de pessoas portadoras do transtorno bipolar do tipo II sofreram em consequência de abuso de substâncias, 39.2 por cento sendo abusadores de álcool ou etilistas, e 21 por cento abuso de drogas ou dependência química.

Estes estudos demonstram que a dependência do álcool possui a chance de ocorrer duas vezes mais em portadores de transtornos do Espectro Bipolar do que em pessoas portadoras de depressão unipolar (depressão sem a ocorrência de mania ou de hipomania). É também notável o fato de que o transtorno bipolar está mais associado à dependência de álcool do que com o abuso de álcool, segundo nos revelam estes dados.

Parte do estudo ECA também evidenciou que o transtorno bipolar do tipo I (com a presença de episódios de mania) e os transtornos relacionados ao uso de álcool são muito mais prevalentes de fato do que seria esperado ocorrer por mero acaso (6.2 vezes mais). Os achados do estudo NCS em relação a este padrão de comorbidade Espectro Bipolar-Etilismo e Transtornos do Humor-Etilismo são bastante similares.

 

Em um estudo de 5 anos, Winokur e seus colaboradores avaliaram um grupo de pacientes bipolares com e sem a presença de etilismo. Nos pacientes bipolares etilistas, a doença bipolar e o alcoolismo foram categorizados tanto como sendo primário ou secundário. Os pacientes com etilismo primário apresentaram significativamente menos episódios de variações no humor ao longo do seguimento do estudo, o que sugere que estes pacientes eram portadores de formas menos severas do Espectro Bipolar.

Assim sendo, há crescente evidência de que a presença concomitante de transtornos pelo uso de álcool possa afetar adversamente o curso clínico do transtorno bipolar, além de implicações prognósticas. Mais especificamente, pacientes bipolares com etilismo secundário podem conseguir interromper o uso de álcool mais facilmente se sua doença bipolar for adequadamente tratada; e pacientes com etilismo primário podem conseguir melhor controle sobre o humor se interromperem o uso de álcool.
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Respeitem-se as diversas e polifacetadas manifestações do Espectro Bipolar, porém afirmo que quando o álcool entra em cena, as possibilidades de que o severo se transforme em algo muito mais grave são bem maiores.

 

Dr Eduardo Adnet

Médico Psiquiatra e Nutrólogo