Bipolaridade e Álcool, uma péssima combinação!
Este é um artigo elaborado em razão do texto que escrevi: Gastos
Exorbitantes Consumo de Álcool e Megalomania no Transtorno
Bipolar, onde afirmo que o álcool etílico é um dos maiores
inimigos dos portadores do Transtorno do Humor Bipolar, e aqui
discorro sobre o tema.
A Desinibição comportamental
induzida pelo Álcool
Todos nós possuímos
mecanismos naturais de controle de impulsos, até os próprios
animais possuem, evidentemente não em um nível tão sofisticado
como o nosso. O que nos diferencia dos animais é que somente o
ser humano possui a consciência de ter consciência. Os animais
não possuem este entendimento, são, portanto, inocentes,
inculpáveis ou “inimputáveis” se alguém assim o preferir.
Já conosco a situação é outra, pois somos diretamente
responsáveis pelos nossos atos, ou pelo modo como exercemos
nossa autonomia natural, a qual nos foi concedida por Deus.
Diante disto, possuímos responsabilidades, compromissos, deveres
e a necessidade de cuidarmos do modo como nos portamos, uma vez
que, quer façamos o bem ou o mal, colheremos, de uma forma ou de
outra, os frutos do nosso procedimento.
Possuímos, todos nós, um mecanismo natural de controle ou
“freio” a nível cerebral, mecanismo este de caráter
fundamentalmente inibitório a fim de que possamos modular nosso
temperamento, nossos desejos, impulsos, afetividade e
sensualidade (aqui sensualidade diz respeito a sentidos e não à
sexualidade, embora esta última também esteja inserida neste
contexto).
Este “freio natural” é o que impede que externemos
comportamentos inadequados ou inapropriados nas mais diversas
situações onde nossos instintos são estimulados (sobretudo os
instintos mais elementares). É este mecanismo de freio que, por
exemplo, impede que quando estamos com fome simplesmente
arranquemos uma coxinha de galinha, ou um quibe, das mãos de uma
pessoa desconhecida e comamos a comida alheia. Pelo mesmo
mecanismo é que não defecamos no meio da rua e nem temos
relações sexuais em via pública. Este mecanismo natural de
controle próprio difere das condutas sociais e culturais que
aprendemos pelo simples fato de não ser aprendido, mas
geneticamente herdado, ou seja, é intrínseco ao ser humano e de
difícil inibição voluntária ou espontânea. Funciona a nível
central (cerebral) e é permeado por um elevadíssimo grau de
complexidade e sofisticação, sendo mediado por conexões
nervosas, neuro-hormônios, dentre outros fatores biológicos e
também psicológicos.
Dentre todas as
substâncias psicoativas conhecidas (e utilizadas) pelos homens,
o álcool etílico é o mais potente inibidor deste nosso “freio
natural”. E uma de suas mais notáveis (e também perigosas)
características é a desinibição progressiva deste controle
central, a qual pode, fácil e rapidamente, extrapolar limites.
Pessoas com humor normal (eutímico) ou retraído (hipotímicas ou
tímidas – acrescente-se) podem até se beneficiar de pequenas
doses de álcool em razão da desinibição que provoca, ao passo
que esta mesma substância pode vir a ser bastante prejudicial em
pessoas hipertímicas e/ou ciclotímicas e ser devastadora em
bipolares com manifestações de mania ou hipomania (Bipolaridade
tipo I e II, respectivamente).
Vamos a alguns exemplos práticos
Já tratei de um
paciente eutímico (humor normal, temperamento moderadamente
brando) e que ao ingerir álcool ficava desinibido, muito
sorridente, brincalhão e divertido. Se continuasse a beber,
frequentemente o que lhe sobrevinha era a sonolência e ele
adormecia. Ou seja, um comportamento diante do álcool sem
grandes consequências. O álcool passou a ser um problema para
este paciente na medida em que passou a beber em demasia, todos
os dias, razão da necessidade de tratamento. Era um etilista.
Saltando de um extremo a outro, um dos pacientes bipolares mais
complexos e complicados de que já tratei era como que uma bomba
ambulante, bastava que começasse a ingerir álcool e iniciava
períodos de hipomania/mania por vezes severíssimos. O detonador
era sempre, e invariavelmente, o mesmo: o álcool.
Tratava-se de uma pessoa muito inteligente, criativa,
carismática e por vezes bastante sedutora. Onde chegava era o
centro das atenções e encantava a todos por sua inteligência,
simpatia e grande erudição. Era um indivíduo muito bem educado
em todos os sentidos, um profissional bem sucedido, amado por
sua família e respeitado profissionalmente. Mas, como já disse,
era como que uma bomba ambulante, como um potente carro que
facilmente se desgovernava, bastando para tal que ingerisse
álcool.
Era um bipolar autêntico com uma singularidade: seu perfil de
bipolaridade se situava como que exatamente entre a hipomania e
a mania nos períodos de crise (surtos/descompensação), uma
classificação diagnóstica que requer do psiquiatra muita
habilidade técnica e experiência no trato com pacientes
bipolares. Especialmente com este, ressalto e repito, um caso de
elevada complexidade e severidade relativamente moderada.
Era capaz, por
exemplo, de realizar um excelente negócio, voltar pra casa e ler
um livro inteiro, logo em seguida sair para uma festa em
Brasília e amanhecer no Rio de Janeiro, tudo isso num pique só!
Ficava dias sem dormir, se reunia com pessoas diferentes, em
diferentes lugares em um mesmo período de 48hrs, retornava para
casa e ia trabalhar. E produzia de modo notável. Eram os tais
períodos de mania/hipomania que experimentava.
Porém, se ingerisse álcool, a história era outra. De carismático
e magnético, logo passava a um estado de arrogância
insuportável, corria muitos riscos desnecessários, tornava-se
hipersexual, se envolvia em brigas com facilidade e gastava
dinheiro de modo assombroso. Podia ficar subitamente
demasiadamente eufórico passando à agressividade e a
comportamentos francamente autodestrutivos. E conseguia ficar
até mais de três dias bebendo, sem dormir um segundo sequer, e
praticamente não se alimentava.
Contou-me que certa vez passou cerca de trinta dias alternando
períodos de mania/hipomania seguidos de mais trinta dias de
depressão severa, a autêntica depressão bipolar. Também, segundo
o seu relato, conseguia devastar suas finanças de maneira
impressionante, se reerguia financeiramente vindo tudo a
acontecer novamente passados alguns meses, e em algumas
situações, mesmo semanas. Teve prejuízos diversos, tanto no que
diz respeito à sua saúde pessoal (física, psíquica e afetiva) e
também financeira.
E aqui uma ressalva importante tanto quanto curiosa e
interessante sob o aspecto psicopatológico: Em diversos períodos
de mania/hipomania sem uso de álcool era surpreendentemente
criativo e produtivo. Ao passo que nos períodos de
descompensação (mania/hipomania) desencadeados pelo uso de
álcool, expressava um comportamento seriamente autodestrutivo e
com sérias e diversas consequências.
Tenho diversos outros exemplos que poderia citar de pacientes
que já tratei com comportamentos semelhantes, mas penso que este
exemplo já é mais do que suficiente para demonstrar que o álcool
é um dos maiores (senão o maior) inimigo dos bipolares.
--------------------------------------
Transtorno Bipolar e
Alcoolismo
Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos da América
NIAAA - National Institute on Alcohol
Abuse and Alcoholism
O Transtorno Bipolar
e o Etilismo frequentemente ocorrem de forma comórbida. Diversas
tentativas já foram feitas com a finalidade de explicar a
relação entre estas duas condições, porém esta relação de
comorbidade entre o Transtorno Bipolar e o Etilismo (ou mesmo o
abuso de álcool) permanece pobremente compreendida. Já há
evidências que sugerem uma relação genética entre estas
condições psicopatológicas. Esta comorbidade (Bipolaridade e
Etilismo) possui importantes implicações tanto para o
diagnóstico como para o tratamento destes pacientes. O uso de
álcool pode piorar o curso clínico (a evolução) do Transtorno
Bipolar e ainda dificultar o tratamento. Na realidade, tem
havido poucas pesquisas focadas no tipo de tratamento mais
apropriado para estes pacientes comórbidos.
A dependência de álcool, alcoolismo ou etilismo, se caracteriza
pela fissura (craving - desejo intenso) por álcool, possível
presença de dependência física de álcool, e a incapacidade de
controlar a forma, o modo ou a velocidade de como (e do quanto)
se bebe em determinada ocasião, e uma crescente tolerância aos
efeitos do álcool. Os critérios para o diagnóstico do abuso de
álcool, entretanto, não incluem nem a fissura pelo álcool e nem
a falta de controle sobre o modo de beber, ambas características
do Etilismo. O abuso de álcool frequentemente se inicia
precocemente (adultos jovens) e é um precursor da dependência de
álcool.
Já no que tange à
associação entre o etilismo e transtornos do humor, diversos
estudos já têm sido disponibilizados a fim de que se possa
evidenciar esta relação. Dois dentre eles, e também dentre os
mais abrangentes estudos epidemiológicos sobre transtornos
psiquiátricos, o National Institute of Mental Health's
Epidemiologic Catchment Area (ECA) e o National Comorbidity
Survey (NCS) trazem importantes revelações sobre o tema. O
estudo ECA revelou que 60.7 por cento dos portadores de
transtorno bipolar tipo I sofreram ao longo de suas vidas com o
abuso de substâncias (álcool ou outras drogas); 46.2 por cento
dos portadores de transtorno bipolar I também sofriam de abuso
de álcool; e 40.7 por cento abuso de drogas ou dependência
química. Quarenta e oito por cento de pessoas portadoras do
transtorno bipolar do tipo II sofreram em consequência de abuso
de substâncias, 39.2 por cento sendo abusadores de álcool ou
etilistas, e 21 por cento abuso de drogas ou dependência
química.
Estes estudos demonstram que a dependência do álcool possui a
chance de ocorrer duas vezes mais em portadores de transtornos
do Espectro Bipolar do que em pessoas portadoras de depressão
unipolar (depressão sem a ocorrência de mania ou de hipomania).
É também notável o fato de que o transtorno bipolar está mais
associado à dependência de álcool do que com o abuso de álcool,
segundo nos revelam estes dados.
Parte do estudo ECA também evidenciou que o transtorno bipolar
do tipo I (com a presença de episódios de mania) e os
transtornos relacionados ao uso de álcool são muito mais
prevalentes de fato do que seria esperado ocorrer por mero acaso
(6.2 vezes mais). Os achados do estudo NCS em relação a este
padrão de comorbidade Espectro Bipolar-Etilismo e Transtornos do
Humor-Etilismo são bastante similares.
Em um estudo de 5
anos, Winokur e seus colaboradores avaliaram um grupo de
pacientes bipolares com e sem a presença de etilismo. Nos
pacientes bipolares etilistas, a doença bipolar e o alcoolismo
foram categorizados tanto como sendo primário ou secundário. Os
pacientes com etilismo primário apresentaram significativamente
menos episódios de variações no humor ao longo do seguimento do
estudo, o que sugere que estes pacientes eram portadores de
formas menos severas do Espectro Bipolar.
Assim sendo, há crescente evidência de que a presença
concomitante de transtornos pelo uso de álcool possa afetar
adversamente o curso clínico do transtorno bipolar, além de
implicações prognósticas. Mais especificamente, pacientes
bipolares com etilismo secundário podem conseguir interromper o
uso de álcool mais facilmente se sua doença bipolar for
adequadamente tratada; e pacientes com etilismo primário podem
conseguir melhor controle sobre o humor se interromperem o uso
de álcool.
--------------------------------------
Respeitem-se as diversas e polifacetadas manifestações do Espectro Bipolar, porém afirmo que quando o álcool entra em cena, as possibilidades de que o severo se transforme em algo muito mais grave são bem maiores.
Dr Eduardo Adnet
Médico Psiquiatra e Nutrólogo